histórias em papel · Catarina Azevedo
A segunda criativa da rubrica histórias em papel é a portuense Catarina Azevedo, que muitos de vós conhecerão como autora do projeto Alfaiate do Livro.
A Catarina é designer de formação mas desde 2010 que, à conta de um acaso feliz, a sua área de trabalho se focou na encadernação. Diria que a Catarina, para além de muito humilde e disponível, é uma curiosa hábil, o que por si só já revela muito. Adora pensar sobre as coisas - porque são como são, como se fazem e como poderia ela fazê-las e/ou até melhorá-las - curiosidade essa que a levou a este mundo, onde alia o design (no desenho de um determinado produto) e a manualidade (dando forma aos mais variados desafios que lhe são propostos).
Trabalha diariamente com papel - quer nos seus próprios cadernos, quer nos que ajuda a criar (dá formação em encadernação desde 2012) - por isso achei que seria muito interessante saber um pouco mais da sua ligação ao papel, numa vertente mais pessoal (uma vez que o resto ela já domina como ninguém!).
Fotografei-a no seu atelier, na baixa do Porto, onde me perdi (como facilmente perceberão porquê) entre papéis e objectos cheios de história(s).
Vamos lá saltar para a conversa com a Catarina?
A inspiração essa está garantida, asseguro-vos! :)
Qual é a tua primeira memória relacionada com papel?
É difícil, mas, entre os óbvios livros, os álbuns de fotografias, as capas dos vinis, há um objecto que me salta à memória mais do que outros; talvez porque ainda faz parte da paisagem. É uma capa de argolas A5, cor de rosa, da Smiley Company onde o meu pai organiza as suas colecções (música, livros, filmes...). A capa existe desde que me lembro, ao pé do sofá, em todas as casas em que vivemos, e é em folhas quadriculadas que estão apontados, por data e por ordem alfabética, os discos, os filmes, os livros lá de casa. É uma lista que o meu pai mantém actualizada ainda hoje.
Tens algum ritual ou superstição que envolva papel? Como cheirar o caderno novo acabado de abrir, usar sempre o mesmo tipo de cadernos ou coleccionar bilhetes de viagens?
Nada de especial. Tento identificar sempre os meus cadernos com o meu nome e morada. Agora que penso, acho que essa prática é tão revelatória da minha distração como do meu optimismo...
Como descreves a Catarina Azevedo criativa?
Teimosa. Acho que, na vida, não sou uma pessoa especialmente teimosa, mas talvez a minha criatividade venha, muitas vezes, de uma vontade persistente de materializar certas ideias. Cresci num contexto muito DIY: os meus pais tinham uma firma de decoração e montagem de exposições e feiras, nos anos 90. Eu ia para a oficina depois da escola, muitas vezes, e entretinha-me a brincar com os restos dos trabalhos que lá andavam. Sempre tive a ideia de que, se o que quero/preciso não existe, ou não me é acessível, posso sempre tentar fazer eu! Foi assim que comecei a fazer Encadernação. :)
Um dos cadernos tromba, uma marca da autoria da Catarina.
Como é o teu processo criativo? E o que sentes que mais o influencia?
Se tentar pensar no que me influencia, tão depressa vou para as referências da Bauhaus como para os desenhos animados que via em miúda, como Os Jetsons, Os Flinstones, Inspector Gadget, A Carrinha Mágica... Acho que o denominador comum tem a ver com funcionalidade e mecânica, que, com uma pitada de simplicidade, são óptimos ingredientes para magia. Portanto, quando tenho um projecto novo, antes de avançar com qualquer gesto, preciso de visualizar "in my mind's eye" todo o processo, ou tanto quanto possível. Não é só perceber os detalhes do projecto, é perceber como executar os vários passos para o tornar possível. Gosto particularmente de projectos que representem algum desafio, que requeiram alguma imaginação para a resolução de problemas, para conseguir tornar possível o objecto idealizado.
Um caderno resultante de um desafio lançado por um cliente que pretendia um caderno que se ligasse entre as suas várias partes.
O papel tem lugar neste processo criativo? Se sim, de que forma?
Ah, sim! Desenhar ajuda-me a pensar e a desmontar processos mais complexos. E, claro, ajuda-me a não me esquecer das soluções encontradas, já que não é possível fazer e guardar um screenshot das imagens mentais que andam aqui na cabeça...
Há algum objecto de papel (livro, embalagem, caderno, postal, qualquer um!) que sintas que tenha marcado, e influenciado, o teu percurso criativo? Se sim, queres contar-nos qual e porquê?
Sou muito susceptível a magias. Quando era miúda tinha um curso de inglês com uma série de livrinhos para aprender palavras a partir de ilustrações. Não me lembro muito bem dos detalhes, mas aquilo vinha com um apontador que fazia um barulho quando se tocava na resposta certa! Nunca desvendei esse mistério, mas consegui resolver outros, como os livros com pop-ups, ou imagens secretas que se revelam sob um filtro de cor, como uns cromos que saíam com o Bolicau nos anos 90. Acho inspirador como coisas tão simples conseguem ter um efeito tão espetecular.
Tens por hábito usar um artigo de registo em papel (caderno, agenda, planner, folhas soltas, etc...) no teu dia a dia? Se sim, registas tudo nesse artigo ou vais distribuindo por vários?
Tenho vários cadernos, materiais e digitais, mas muitas muitas vezes acabo por usar folhas soltas que habitam o estúdio. Folhas? Folhinhas... Normalmente aparas, que guardo quando acho que têm potencial. Servem de marcador, de bitola, de post-it... Mas quando estou fora do estúdio gosto de ter um caderno sempre; para apontar coisas, organizar ideias, ou simplesmente passar o tempo. Também tenho alguns cadernos no iPad onde gosto de escrever e desenhar com o lápis digital. Gosto do caderno digital pela sua imaterialidade; a facilidade em apagar, duplicar, mudar de ferramentas... Há lugar para todos os formatos, comigo!
Esquema para explicar ao cliente o processo de produção.
Costumas guardar e revisitar esses registos ou, pelo contrário, dás-lhes uso no momento da criação e depois desapegas-te deles com facilidade?
Depende do registo, mas costumo guardar quase tudo – mesmo os papelinhos que uso para apontar detalhes de um projecto, ponho numa caixa. Não tenho por hábito revisitar esses registos intencionalmente, mas quando me deparo com um caderno antigo, por exemplo, gosto de folhear e ver o que é que eu andava a fazer naquela altura. Claro que quando estou à procura de alguma coisa em específico nunca encontro o que preciso!
Acreditas que no futuro haverá sempre lugar para o papel? Ou que as opções de registo digitais acabarão por se sobrepor?
Sim. Acho que já todos percebemos que, por muito incrível que seja o digital, quando queremos preservar alguma coisa mais especial queremos uma versão material. Imprimimos a fotografia, guardamos o desenho, compramos o livro... O digital é muito prático, mas quando fica sem bateria pedimos ao senhor do café para nos trazer uma caneta e escrevemos no guardanapo.
Um dos vários folhetos antigos do teatros do Porto que a Catarina guarda.
Tens algum objecto de papel que te desperte muitas memórias? Se sim, queres contar-nos a sua história?
Costumo dizer que sou uma pessoa materialista. Não é pelo valor monetário das coisas, mas é pelas memórias que os objectos me trazem, pela história que têm. Se há um objecto de papel? Sim, vários!
Mas vou escolher falar de um livro: "A Terra Vista do Espaço". Não é um livro particularmente raro ou antigo (1992), mas tem um papel importante para mim (viste o trocadilho? Hehe!). Comprei-o nuns usados porque achei as imagens fascinantes. Foi praí em 2011 ou 12 e foi importante, essa altura. Fim do curso, Crise da Dívida, Troika... por um lado uma grande incerteza, mas por outro também nos afiou a criatividade e o sentido de iniciativa; formaram-se colectivos, fizeram-se mercados, feiras e exposições... fomos a "geração à rasca" e tivemos que nos desenrascar! Nessa altura tinha começado a fazer encadernação para os projectos da faculdade e alguns amigos começaram a pedir-me ajuda para encadernar para eles também. Isso encorajou-me a explorar e a aperfeiçoar várias técnicas e a certa altura comecei a fazer cadernos e agendas para vender. Este livro, como mencionei, tem imagens fascinantes; como o nome indica, são imagens da Terra vista do Espaço, que fazem lembrar, na sua abstracção, os papéis marmoreados dos livros antigos. Na altura, decidi, então, usar as páginas com as imagens maiores para fazer uma série limitada de cadernos: os primeiros que fiz com capa dura! Portanto, este livro traz-me as memórias dos primeiros passos do Alfaiate do Livro; as primeiras experiências para uso próprio, os primeiros workshops, até o mercado onde conheci o Beija-flor!






alfaiate do livro · “cosmos” - uma edição limitada de exemplares únicos · 2012
No tempo em que estivemos ali à conversa, e enquanto fui fotografando, a Catarina foi fazendo este caderno especial :)
Muito obrigada Catarina, pela disponibilidade e partilha, foi uma viagem mesmo bonita esta de saber um pouco mais do teu processo criativo e ligação ao papel!
- - -
Porto, abril de 2025
fotografia: Susana Gomes
- - -
onde descobrir mais sobre o trabalho da Catarina, ou workshops futuros: Alfaiate do Livro / cadernos tromba
para workshops individuais: contactando a Catarina via email
versão EN: um extra da Catarina, obrigada!
EN version: a little extra from Catarina, thank you! *
What is your first memory related to paper?
It's hard, but among the obvious books, photo albums, vinyl covers, there is one object that comes to mind more than others; perhaps because it is still part of the landscape. It's a pink A5 ring binder from the Smiley Company where my father organizes his collections (music, books, films...). The binder has been there for as long as I can remember, at the foot of the sofa, in every house we've lived in, and it's on grid that he keeps records, films, and books in the house organized, by date and in alphabetical order. It's a list that its kept updated to this day.
Do you have any rituals or superstitions involving paper? Like smelling a new notebook that has just been opened, always use the same type of notebooks or collect travel tickets?
Nothing special. I always try to identify my notebooks with my name and address. Now that I think about it, I think this practice is as revealing of my distraction as it is of my optimism...
How would you describe the creative Catarina Azevedo?
Stubborn. I think that, in life, I'm not a particularly stubborn person, but perhaps my creativity often comes from a persistent desire to materialize certain ideas. I grew up in a very DIY environment: my parents had a company that did interior decoration and fairstands assembly in the 90s. I would often go to the workshop after school and have fun playing with the leftovers from the work that was there. I've always had the impression that if what I want/need doesn't exist, or isn't accessible to me, I can always try to do it myself! That's how I started doing Bookbinding. :)
What is your creative process like? And what do you feel influences you the most?
If I try to think about what influences me, I go to Bauhaus references as well as to the cartoons I watched when I was a kid, like The Jetsons, The Flintstones, Inspector Gadget, The Magic School Bus... I think the common denominator has to do with functionality and mechanics, which, with a pinch of simplicity, are great ingredients for magic. When I have a new project, before proceeding with any move, I need to visualize in my mind's eye the entire process, or as much as possible. It's not just about understanding the details of the project, it's about understanding how to execute the various steps to make it possible. I particularly like projects that represent some challenge, that require some imagination to solve problems, to be able to make the idealized object possible.
Does paper have a place in this creative process? If so, in what way?
Oh yes! Drawing helps me think about and dismantle complex processes. And, of course, it helps me not to forget the solutions I find, since it is not possible to take and save a screenshot of the mental images that are here in my head...
Is there a paper object (book, packaging, notebook, postcard, anything!) that you feel has marked, and influenced, your creative trajectory? If so, do you want to tell us which one and why?
I am very susceptible to magic. When I was a kid, I had an English course with a series of little books to learn words from illustrations. I don't remember the details very well, but it came with a pointer that made a noise when you tapped the right answer! I never solved this mystery, but I managed to solve others, like books with pop-ups, or secret images that are revealed under a filter of color, like the stickers that came out with Bolicau in the 90s. I find it inspiring how such simple things can have such a spectacular effect.
Do you have the habit of using a paper record item (notebook, diary, planner, loose sheets, etc.) in your daily life? If so, do you record everything in this article or do you distribute it across several articles?
I have several notebooks, material and digital, but I often end up using loose sheets that live in the studio. Sheets? Scraps... Usually clippings, which I save when I think they have potential. They can be used as a marker, ruler, post-it... But when I'm out of the studio I like to always have a notebook with me; to write things down, organize ideas, or simply pass the time. I also have a few notebooks on my iPad where I like to write and draw with digital pencil. I like the digital notebook for its immateriality; the ease of deleting, duplicating, changing tools... There's room for all formats, for me!
Do you usually save and revisit these records or, on the contrary, do you use them at the time of creation and then easily let go of them?
It depends on the record, but I usually keep almost everything – even the little pieces of paper I use to write down details of a project, I put in a box. I don't have the habit of intentionally revisiting these records, but when I come across an old notebook, for example, I like to flip through it and see what I was doing back then. Of course, when I'm looking for something specific I never find what I need!
Do you believe that there will always be a place for paper in the future? Or that digital registration options will eventually overide?
Yes. I think we've all realized that as amazing as digital is, when we want to preserve something more special we want a physical version. We print the photo, frame the drawing, buy the book... Digital is very practical, but when the battery runs out we ask the waiter at the cafe to bring us a pen and we write on the napkin.
Do you have any paper objects that bring back a lot of memories? If so, do you want to tell us its story?
I often say that I am a materialistic person. It's not about the monetary value of things, but about the memories that objects bring me, the history they have. Is there a paper object? Yes, several! But I will choose to talk about a book: "Earth seen from Space". It's not a particularly rare or old book (1992), but it plays an important role for me. I bought it second hand because I found the pictures fascinating. It was around 2011 or 12 and it was important, that time. End of my degree, Debt Crisis, Troika... on the one hand a great deal of uncertainty, but on the other it also sharpened our creativity and sense of initiative; collectives were formed, markets, fairs and exhibitions were held... we were the "struggling generation" and we had to get by! At the time I had started doing bookbinding for college projects and some friends started asking me for help binding for them too. This encouraged me to explore and perfect various techniques and at one point I started making notebooks and journals to sell. This book, as I mentioned, has fascinating images; as the name suggests, they are images of the Earth seen from Space, which resemble, in their abstraction, the marbled papers of old books. At the time, I decided to use the pages with the larger images to make a limited series of notebooks: the first ones I made with a hard cover! Therefore, this book brings back the memories of the first steps of Alfaiate do Livro; the first experiences, for personal use, the first workshops, even the market where I discovered Beija-flor!