histórias em papel · Inês Maldonado
Foi numa manhã solarenga de Verão que me encontrei com a Inês Maldonado, a quinta criativa desta rubrica histórias em papel.
A Inês é designer e, depois de algumas aventuras partilhadas, assume hoje em dia o seu trabalho a solo no atelier Maldonado. É designer e, acrescentaria eu, uma contadora de histórias incrível, que parte muitas vezes das memórias dos objectos que vai guardando (seus, da sua família única e de outras tantas com as quais se vai cruzando) e do encontro destas com as experiências que vai acumulando, para criar de forma única.
Foi mesmo delicioso vê-la - entusiasmada e orgulhosa - abrir caixas e mais caixas cheias de papéis coloridos, fotografias, recortes, autocolantes e outros tantos papéis onde as memórias ganham vida. É notório, no seu trabalho, a influência da nossa cultura popular, da tipografia e do design de outros tempos, que alia - de forma exímia - a um design mais contemporâneo. Na verdade sinto que esta história merecia um áudio à altura, onde ouviríamos a Inês falar detalhadamente da origem daquele papel, fotografia ou até manual de instruções mas, na impossibilidade de o fazer, deixo-vos alguns registos visuais, esperando que estes vos agucem a curiosidade e que vão descobrindo o resto no trabalho inspirador da Inês.
Vamos saltar para a conversa (cheia de detalhes maravilhosos) com a Inês? :)
Qual é a tua primeira memória relacionada com papel?
Tenho várias: o papel manteigueiro que usava na minha escola primária para fazer desenhos; O meu bisavô, a fazer-me cavalos em cartão com uma tesourinha, quase de olhos fechados; os papéis de rascunho, de várias cores e proveniências, que se iam acumulando numa pilha na secretária do meu avô.
Um dos tais cavalos de cartão que o bisavô fazia para a Inês
Tens algum ritual ou superstição que envolva papel? Como cheirar o caderno novo acabado de abrir, usar sempre o mesmo tipo de cadernos ou coleccionar bilhetes de viagens?
Não tenho superstições. Também não chamaria ritual, mas coleciono papéis. Alguns são completamente lisos. Guardo-os pela forma como envelheceram. Há tons, manchas e texturas que o digital não sabe imitar, e que me servem mais tarde para dar patine a certos trabalhos.
Quando uma casa se desfaz, sou aquela pessoa estranha que pede para herdar a gaveta dos papéis esquecidos: os cartões de visita, os manuais das máquinas, os envelopes desbotados. São objetos feitos para desaparecer. É isso que os torna tão valiosos: mostram-nos a vida e o design gráfico de outra era, uma linguagem visual que já não falamos, mas que continua a ecoar. O design é uma disciplina recente, mas sempre existiu e está em todo o lado: nos fósforos, nos panfletos e nos postais que hoje colecciono em caixas. Coisas que quase ninguém guarda, mas que dizem mais do que parece. E, claro, há também as cartas em papel, que são conversas congeladas no tempo.
Como descreves a Inês criativa?
Um paradoxo ambulante. Obsessiva com a organização, mas sempre à procura da beleza no que escapa ao controlo. Fascinada pelo passado, na curiosidade pelo outro e nas histórias, mas com os olhos postos no futuro, a imaginar o que ainda pode ser desenhado, dito ou impresso. Há um esforço constante de equilíbrio entre essas forças. Nem sempre resulta. Mas talvez seja aí que está o motor: nesse lugar instável entre o rigor e o encanto.
Como é o teu processo criativo? E o que sentes que mais o influencia?
O meu processo criativo é como lançar ingredientes para um caldeirão e esperar que o feitiço levante fervura. Começa quase sempre com uma narrativa, ligada a imagens. Recolho tudo o que me parece certo, mesmo que ainda não saiba porquê: imagens, texturas, tipografia, palavras. Depois olha para o quadro geral e espero que as sinapses começam a acender-se, e a solução aparece. A partir daí é difícil parar, as peças encaixam, e o puzzle começa a revelar-se.
Tudo pode influenciar. Uma viagem, uma conversa, um poema, um filme, os lugares da minha infância. Somos um amontoado dessas coisas, e as histórias que conto (porque no fundo é isso que faço) têm que ecoar nas pessoas. Têm que fazer sentido, não só para mim, mas para quem a recebe.
Se nos limitarmos ao Pinterest, acabamos todos a ver as mesmas imagens. E, pior, esquecemo-nos das nossas próprias referências. O design sueco, japonês, norte-americano têm riqueza e o seu lugar, mas para mim tornou-se urgente recuperar o que é nosso. Às vezes isso significa olhar para a arte popular portuguesa, para o artesanato em feiras de província, para os bordados de Viana, para as capas dos livros do Sebastião Rodrigues, para as revistas Panorama ou até para as embalagens das mercearias. Coisas que estiveram sempre ali, mas que merecem voltar a ser vistas com olhos mais atentos, numa era em que o turismo descontrolado tem feito desaparecer os lugares mais autênticos do nosso país.
À esquerda a coleção de caixinhas de fósforos da Inês que serviu de inspiração para a caixinha personalizada para o restaurante Infame, cujo branding é da sua autoria.
Um desenho de bordado, herdado da avó da Inês, que serviu de inspiração ao postal de Boas Festas do seu atelier.
O papel tem lugar neste processo criativo? Se sim, de que forma?
Tem, sem dúvida. Muitas vezes volto às caixas de memórias efémeras de que já falei, tanto para me inspirar como para usar como base de trabalho. Já utilizei papéis antigos e fotografias de família para ilustrar projetos, porque a realidade tem uma força que a ficção raramente alcança. Além disso, a qualidade, cor e textura do papel podem tanto realçar como estragar um projeto. Um papel de alta gramagem, especialmente quando combinado com impressão em tipografia ou com um cunho, cria uma experiência táctil única. Estes detalhes são uma parte importante do processo criativo, e fico muito feliz quando um/a cliente valoriza essa atenção ao detalhe e decide investir num papel especial.
Postais para a Quinta do Pinheiro, onde a Inês foi responsável pelo branding e onde é notória a influência do papel (da sua cor, textura), da tipografia e dos acabamentos escolhidos, que enriquecem muito o resultado final.
Há algum objecto de papel (livro, embalagem, caderno, postal, qualquer um!) que sintas que tenha marcado, e influenciado, o teu percurso criativo? Se sim, queres contar-nos qual e porquê?
Mais do que um papel, foram os papéis que os outros usavam que marcaram o meu percurso.
A minha avó, que é pintora e ilustradora, tinha a casa cheia de papéis, coleções de postais, telas e tintas, e fez-me ver que era possível ter uma profissão que consistia em “fazer desenhos”. Isso para mim sempre foi um sonho, e continua a ser. O meu padrasto, que era arquiteto, tinha um estirador onde desenhava em grandes rolos de papel vegetal. Comecei a brincar a desenhar casas em planta muito cedo. Isto fez com que, primeiro, quisesse ser pintora; depois achei que gostaria de ser arquiteta.
Por fim, foram as capas dos livros e dos discos que me fizeram perceber que o design podia contar uma história. Havia ali uma promessa, uma atmosfera e assim descobri uma profissão que conciliava o lado criativo com que cresci com o meu lado mais racional, geek e “arrumadinho”.
Tens por hábito usar um artigo de registo em papel (caderno, agenda, planner, folhas soltas, etc...) no teu dia a dia? Se sim, registas tudo nesse artigo ou vais distribuindo por vários?
Só uso cadernos para escrever textos e notas. A minha agenda e o planeamento estão todos em formato digital (sou fã do notion). Ainda assim, guardo sobras de papel para rascunhos, e é nesses pedaços soltos que, na maioria das vezes, registo ideias, notas de reuniões e esboços.
Costumas guardar e revisitar esses registos ou, pelo contrário, dás-lhes uso no momento da criação e depois desapegas-te deles com facilidade?
Costumo usar os papéis de rascunho sempre de forma temporária. Tenho até um certo prazer em eliminar notas de reuniões e listas assim que estão tratadas ou transpostas para a agenda digital.
Acreditas que no futuro haverá sempre lugar para o papel? Ou que as opções de registo digitais acabarão por se sobrepor?
Sempre. Um email nunca substitui a sensação de receber um postal na caixa do correio.
É impossível escolher só um. Mas posso listar alguns de que nunca me desfaria:
A minha arca do tesouro, que é uma caixa cheia de desenhos de bordados que herdei da minha avó Jú.
O meu banco de imagens analógico.
O arquivo fotográfico da minha família, que ando há anos a recuperar, digitalizar e catalogar. Cada vez que o scanner acaba de tratar um negativo, o tempo volta para trás.
Um inventário de todos os objectos do meu quarto, escrito num caderno quando tinha 11 anos, um retrato do que era a minha vida naquele tempo e da minha obsessão por listas.
Tens algum objecto de papel que te desperte muitas memórias? Se sim, queres contar-nos a sua história?
Muito obrigada Inês, pela disponibilidade e inspiração constantes.
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Lisboa, julho de 2025
fotografia: Susana Gomes
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Descubram mais sobre o trabalho da Inês: no site seu atelier, na página de instagram e ainda na sua Papelaria Moderna, um projeto em construção que promete inspirar-nos muito!